DIA DAS MÃES
Mães de anjo: mulheres ressignificam a dor da perda em força e coragem
Mães que perderam filhos no momento do nascimento aprenderam a lidar com a dor e ressignificaram a perda para ajudar outras mulheres
Por Leilane Teixeira

Era por volta de duas horas da manhã quando a fotógrafa Thaís Mara ouviu o primeiro e único choro da sua filha, Catarina Paiva. Era um choro bem fraquinho e ainda distante, mas forte o suficiente para marcar a sua presença tão esperada. Catarina veio ao mundo antes do tempo previsto e, por isso, lutou por duas horas para conseguir sobreviver, porém, não conseguiu. O rosto dela, Thaís nunca conseguiu ver, mas a viu de costas, com um cabelo preto que escorria pelo pescoço. Hoje, Catarina não está presente fisicamente, mas vive na memória e no coração de Thais, dando à ela o título de “Mãe de anjo”.
São chamadas “Mães de anjo” as mulheres que viveram a dor de perder um filho durante a gestação, no momento do parto ou pouco depois do nascimento. Embora não existam dados oficiais sobre quantas mães de anjo existem no Brasil, a comunidade é reconhecida e existem grupos de apoio nas redes sociais que as conectam, servindo como uma troca mútua para ressignificar a perda.
“Sempre foi um sonho engravidar. Eu fiquei tentando por uns 3 anos e chegou um momento em que eu achava que eu não podia ser mãe, porque nunca dava positivo. Até que eu decidi jogar para o universo. Aí no final de 2022, eu vi que eu estava grávida. Até então tudo ok, tudo certo. Minha gestação foi muito saudável, tudo muito tranquilo com os exames pré-natal. Em janeiro, eu fiz o chá revelação. Eu sempre quis uma menina e já tinha o nome dela. Tanto que em 2016, sem nem sonhar em saber quando eu engravidaria, eu escrevi uma carta para ela e escolhemos o nome. Cleiton, meu esposo, que escolheu. Eu guardo essa carta até hoje em formas digital”, contou Thaís em entrevista ao Portal A TARDE.
Foi depois do chá revelação que as coisas, no entanto, começaram a tomar outro rumo. Segundo Thaís, que na época tinha 28 anos, Catarina estava prevista para nascer entre o final de junho e início de julho. Porém, em março, dez dias depois de fazer a ultrassom morfológica, ela começou a sentir dores e depois daí, os dias de angústia começaram.

“Eu fiz a morfológica de março e estava tudo normal. Só que 10 dias depois, no dia 20 de março, eu comecei a sentir muitas dores na barriga, ela estava bem dura. Eu estava trabalhando no dia e acabou saindo o tampão mucoso, que é uma secreção que dá o sinal que a mulher vai entrar em trabalho de parto a qualquer momento. Como eu não sabia exatamente o que era e estava tarde, deixei para falar com o obstetra no outro dia. Quando acordei no dia 21, ainda estava com a barriga doendo. Segui trabalhando, mas quando estava quase no final do expediente, eu fui ao banheiro e vi que estava suja de sangue. Nesse momento, eu decidi ir para o hospital, porque percebi que algo grave estava acontecendo”, explicou
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A perda
Ao chegar no hospital, Thaís foi informada que estava em trabalho de parto e que Catarina nasceria antes do tempo. No momento do ocorrido, o bebê estava com 23 semanas, iniciando o sexto mês. Nessa fase, os médicos consideram prematuridade extrema, termo usado para o nascimento de um bebé com menos de 28 semanas de gestação. Estes bebês, segundos os médicos, são mais imaturos e precisam de cuidados especiais em Unidades de Tratamento Intensivo Neonatal (UTI Neonatal). Sobreviver não é impossível, mas é muito difícil.
“Fui informada que estava entrando em trabalho de parto de forma prematura extrema, motivada por uma infecção urinária silenciosa, que eu não sabia que estava. Os médicos informaram que era um infecção motivada pela bactéria chamada Sludge, que tem uma espessura como se fosse de lama, que se aloja no líquido amniótico. Consequentemente, Catarina estava ingerindo essa bactéria, só que a gente não sabia. E foi isso que fez com que eu tivesse um parto prematuro. Era um corpo estranho dentro do meu corpo. Eles me informaram que as chances eram muito pequenas de sobrevivência, mas que eles iriam tentar”.

Depois do diagnóstico, a fotógrafa foi imediatamente internada para iniciar o parto. “Fiquei internada do dia 21 de março até o dia 29. Mas foi no dia 25 que ela nasceu. Eles [os médicos] não me enganaram, disseram que a chance de sobreviver era mínima, isso de certa forma, foi melhor, não fui enganada. Mas claro que a gente sempre tem uma esperança, a gente não engravida imaginando que vai perder o filho. Catharina nasceu viva e ainda chorou, eu ouvi o choro dela. Não consegui ver minha filha, mas tinha sonhado com ela dias antes. A vi apenas de costas, e ela era exatamente como no sonho que eu tive dias antes. Tinha um longo cabelo preto".
Minha filha foi uma guerreira, ela lutou por duas horas tentando sobreviver
Dores que se repetem
Histórias como a de Thais não são raras. Mesmo com idades e trajetórias de vidas diferentes, a a Uildimeire Rodrigues, de 46 anos, se une à ela no turbilhão de sentimentos que é ser mãe de anjo. No caso de Meire, já existia um filho de 13 anos quando, de novo, o desejo de ser mãe tomou conta do seu coração. Dessa vez, ela e o marido almejavam uma menininha. E assim quis assim o destino: ela engravidou de Manuela.
No entanto, o que era para ser apenas uma consulta periódica e depois voltar para casa, levou Meire direto para uma unidade de saúde, após constatar que a pequena Manu, com 8 meses, estava com o batimento cardíaco fraco. “Eu já tenho um filho e 13 anos depois decidi ter novamente. Era o sonho do meu marido que fosse uma menina. Engravidei em 2021 e ficamos bem felizes quando soubemos que era a nossa Manuela. Ela estava prevista para nascer em 2022, no período da pandemia. Tava ocorrendo tudo bem, até que, aos 8 meses, quando fui fazer um exame periódico, a médica percebeu que o batimento cardíaco dela estava muito baixo e direcionou meu internamento imediatamente”, contou em conversa com o Portal A TARDE.

Desesperada e sem entender o que estava acontecendo, Meire ficou angustiada e com medo ao perceber que era uma situação grave. A a foi direcionada para a sala de parto, onde foi feita uma cesariana de urgência. O que ela não esperava era que o bebê nasceria sem vida. “Eu fiquei muito desesperada com o que estava acontecendo. Fiquei desnorteada. Me colocaram para dormir e quando acordei, não conseguia entender o que estava acontecendo comigo. Todo mundo vindo me perguntar se eu estava bem".
Ao recobrar a consciência, Meire vive ainda a angústia de não ter conseguido ver a filha e nem ao menos, enterrá-la. “Eu precisei ficar internada cinco dias ainda, porque, devido a vacina que tomei na pandemia, eu desenvolvi trombofilia, que foi a causa da morte da minha filha. Meu marido que resolveu tudo. Apesar do desespero, ele conseguiu tirar uma foto dela".
A foto é a única imagem que eu tenho da minha filha. Não a vi, não pude me despedir
Vivendo o luto
Perder um filho, independente do período, é uma dor que paralisa e deixa marcas por dentro que jamais irão cicatrizar, tanto para Thaís, Meire, e outras mães de anjo. Quando isso ocorre num período tão prematuro, a dor do que não foi vivido, sufoca e esvazia. A a sentiu, principalmente, ao voltar para casa sem a filha nos braços.
Lidar com o vazio no quarto do bebê, com o berço que já estava montado e nunca mais iria ser usado por Manuela, fez com que Uildimeire entrasse em um quadro profundo de depressão. Segundo ela, foi necessário se ausentar por 10 meses do trabalho.
“Quando eu fui pra casa, foi a pior parte. Eu cheguei em casa e a sensação de sair de um quarto do hospital sem a criança no braço foi a pior do mundo. Acabei entrando em um estado de depressão profunda, a ponto de não conseguir dirigir, não queria ver pessoas, eu esqueci que eu tinha um filho adolescente que precisava de mim. Eu simplesmente me anulei para tudo. E quando eu deitava, vinha aquela cena do hospital e eu ouvia várias vozes na minha cabeça”, relembrou emocionada.

O quarto de Manuela só foi desfeito um ano depois. “Já estava praticamente tudo pronto para a chegada dela. O quarto decorado com nuvens, berço no lugar. Tudo personalizado. Eu ficava vendo tudo pronto e sem ela ali, foi como um buraco no meu coração. Eu só consegui voltar à rotina 10 meses depois, com a ajuda da psicóloga. Fui ao cemitério, me despedi da minha filha. E só depois de um ano eu consegui desfazer a decoração do quarto, que hoje deixei como um depósito. Atualmente, eu tento seguir. Muita gente questiona o fato de eu ar muito tempo depressiva, minimizando minha dor, principalmente por já ter um filho. Mas só quem perde um filho que sabe, nada substitui”.
Thaís, 15 anos mais nova, já sabe bem disso. A ausência de Catarina dura dois anos e ela vive um dia de cada vez. “A saída do hospital é sempre a pior parte. A gente beira à loucura. É um sentimento que não tem como explicar. Você perde o sonho e vive a vida achando que se engravidar novamente, vai perder mais um filho. Ir para minha casa nova, que eu sonhava ir com ela, foi muito difícil. Foi difícil arquivar as roupas dela. Eu comprei uma caixa rosa para guardar as coisas... não foi nada fácil. Além disso, foi doloroso ouvir pessoas achando que a gente substitui, dizendo que eu sou nova, que posso fazer outros".
Eu pretendo ter outros filhos, mas Catarina é única e nada substituirá. Desde o ocorrido, eu tive e tenho que viver um dia de cada vez
A psicologia perinatal afirma que não existe um prazo predeterminado para viver um luto após a perda de um filho. “O luto não tem prazo de validade. Você pode ar 10 anos e continuar vivenciado aquele luto, porque ele não é linear com início, meio e fim. Vão ter momentos em que a mãe de anjo vai estar mais tranquila, sorrindo, e vão ter momentos em que a recaída vai vir. E muitas vezes isso não é respeitado. Acreditam que é só fazer outro para substituir que tudo resolve, mas não tem nada a ver com isso. E uma mãe ouvir coisas assim, só piora", explica Thaís Riccio, psicóloga perinatal
De acordo com a profissional, o cuidado a ser tomado é observar se não é um luto patológico. "A gente só precisa tomar cuidado para não ser um luto patológico, que é o que leva para depressão, leva para ansiedade fora do comum. Caso a gente identifique esse quadro, orientamos a paciente a procurar o especialista adequado".
Ressignificando a perda
Há quem defenda que mãe é um ser divino. Talvez por esse motivo, o “título” mãe de anjo se encaixe muito bem para elas, que sofrem pela perda de um filho no início de sua vida, seja durante o período gestacional ou neonatal.
Apesar dos sonhos e planos frustrados, Thaís Marar fala com felicidade de Catarina. Segundo ela, é um amor que segue transbordando e a tornando-a mais forte e uma pessoa melhor.
"Desde quando eu descobri Catarina na minha vida, foi muita felicidade. Claro, tem o lado triste, como esse mês mesmo, que é mês das mães e também é um mês próximo da chegada e partida dela. Mas hoje eu tento trazer força. Tem dias que eu quero viver muito, tem dias que eu não queria mais estar viva. Tem dias que eu consigo ver outras bebês e fico triste, mas tem outros momentos que eu fico feliz".
Os sentimentos oscilam o tempo todo, mas eu ressignifiquei a perda da minha filha, até mesmo para ajudar outras mulheres. Eu digo que a morte vida me deu

Desde o ocorrido, a fotógrafa ou a compartilhar a própria experiência nas redes sociais, ajudando mulheres que aram ou que estão ando pela mesma situação. Formada em jornalismo, Thaís conta que sempre gostou de se comunicar. ou um tempo afastada das redes, mas depois voltou a utiliza-las para explicar que existem formas de viver de o luto.
"Eu sempre gostei muito de falar sobre maternidade, até mesmo antes de engravidar. Depois de Catarina, isso se intensificou. Eu usei a minha experiência e a minha vivência para ajudar outras mães de anjo, falando sobre luto e que é normal você sorrir, apesar de tudo. O luto ele é eterno e terão sempre dias e dias. Depois que comecei a postar, começou uma troca muito bacana nas redes. Descobri que, apesar de dolorido, era mais comum do que eu imaginava ter mulheres que aram pelas mesmas situações. Muitas mães me falam que depois da minha experiência, conseguem lidar melhor com o luto. E eu quero continuar. Eu tenho muitas ideias na minha mente ainda e meu objetivo vai ser ajudar as mulheres com informações importantes sobre a maternidade".
Já para a Uildimeire, a dor a tornou mais forte. Ela não não pretende mais ter filho em outro momento, devido a trombofilia que adiquiriu e a idade considerada avançada. Mas hoje, com 46 anos, ela aconselha mulheres que têm o sonho de ter filho, que, se puderem, tenham mais cedo.

"Eu sinto que eu consegui amadurecer ainda mais com tudo isso que eu ei. Eu até pensei em tentar de novo, mas eu teria que iniciar um protocolo muito complexo para conseguir segurar a criança no útero, devido a tombofilia que adquiri. É um trauma que fica na mente, mas a gente ressignifica e fica mais forte. Mas hoje consigo aconselhar no que eu posso. Se uma mulher tiver um sonho de ter um filho, eu digo que, se puder, tenha logo, não fica adiando por causa de trabalho. Quanto antes tiver, é melhor para conseguir reverter algum problema. Inclusive nesse caso, se eu fosse mais nova, teria tentado de novo", aconselhou.
Amor eterno e insubstituível
Apesar de extremamente doloroso, a morte de um filho não é o fim da maternidade, não importa quanto tempo permaneceu com sua mãe. Nesse Dia das Mães, a mãe de Catarina tem muito motivos para agradecer à tudo que sua filha conseguiu fazer. Mesmo tendo que seguir sem seu pacotinho de amor, Thaís diz ser eternamente grata por ter sido escolhida para ser mãe dela.
Catarina é a minha fortaleza. Ela é a minha fraqueza. A minha cura. A minha ferida. Ela é a vida da minha vida e eu não me vejo mais sem Catarina
"As pessoas acham estranho o modo que eu falo, mas ela está aqui de alguma forma. E eu preciso acreditar que ela está aqui de alguma forma. Muitas vezes ela me provou que está aqui.Catarina é o renovo na minha vida e me mostrou que eu sou uma mulher muito foda, muito forte". Emocionada, Thaís conta ainda que Catarina mostrou a ela que é possível fazer tudo que quiser.
"Me ensinou que eu posso ser muito maior do que eu acho que eu sou. Ela me ensinou sobre o amor genuíno, sobre o amor crescente, o amor na ausência e sobre amar sem saber como seria o futuro. Ela me ensinou sobre fortaleza e a não desistir. Catarina é meu fôlego visível, que transformou a minha vida, mesmo sem ter responsabilidade nela. Ela é meu motivo para continuar tentando a maternidade, porque os irmãos dela serão a continuação do meu amor materno, e jamais uma substituição".

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